OLÁ, EU SOU O AREIAS!

Olá a todos. Chamo-me José Caruncho de Areias, nasci no Cartaxo, sou arredondado e baixo e toda a gente me conhece por uma alcunhazinha que já me arrancou três quilitos e tal de risota furiosa ao corpinho furioso. Enfim, um pequeno adultério da amizade. Eu explico: lá na pensão onde vivo como um monge não passo da condição de "Areias". Sou "O Areias" – sim, esse mesmo!... "O do camelo". Para ser mais concreto diria que sou meio homem, meio excremento. Um excremento que eles toleram. Um homem que eles abominam. Os excrementos, afinal de contas, toleram-se bem entre si, os homens é que não. No entanto, vocês não imaginam como eu me alimento gostosamente da raiva e do ódio que lhes nutro. Mas o pior é a rapaziada que se diz minha amiga--faz-me sofrer e eu divirto-me rangendo os dentes de emoção. Os filhos da Dona Jacinta, por exemplo, esses desengonçados oboés de desengonçada força e puro adormecimento, quase chegam a quebra-me a paciência em mil pedacinhos de papiro pintado de preto. "Ó Areias, toca a encher as bossas, pá! Ó Areias, fala islâmico que é pra gente se rir um bocado! ó Areias, cita lá o Mixel Foù Cou! ó Areias isto, ó Areias aquilo! Eles hão-de ver quem é o Areias...Adiante: tenho vinte e cinco anos e há coisa de dez anos cometi uma das maiores proezas da minha vida: desenhei um pentagrama no pescoço do meu pai. Uma noite, aproveitei-me do pesado sono de leve sonhar que ele tem, e lá lhe desenhei o diacho do pentagrama. Estou a mentir, esta fi-la eu ontem à tarde, no café do sr. Zé Bocas. Gargalhada geral. O outro dia, só por brincadeira, tirei ao meu pai os ossos, as vísceras, as veias e já que estava com a mão na massa, acabei por lhe extrair por completo os sistemas nervoso, digestivo e linfático. Uma bricadeira sem consequências--um dia não são dias, não é verdade? No entanto, o mais engraçado foi ver o meu pai, no dia seguinte, levantar-se da cama a estoirar de molas, bocados de elástico, esferovite, mata-borrão, disquettes velhas, relógios antigos, cabelos do Mixel Foù Cou e os restos do almoço do dia anterior. Depois, só por curiosidade, pus-me a observar ao espelho os seus largos e frios olhos feitos de restos do almoço dia dia anterior, cabelos do Mixel Foù Cou, molas de relógios antigos, disquettes velhas, mata-borrão, esferovite, bocados de elástico, pareciam enormes ao fundo do espelho, tudo roubado à Dona Jacinta. Na verdade, lá razão tem ela quando me chama de "tro-glo-dita"-- vocábulo cujo significado tanto ela como eu desconhecemos em absoluto. No entanto, sinto e pressinto que ela tem toda a razão. Ela e os seus execráveis e queridos filhos: o Firmino Baldios e o Zeca Careca. Voltando à vaca fria: acho que fiz um péssimo negócio quando, aos dezoito anos, comprei um autómato na Feira da Luz, uma réplica perfeita do meu pai. O problema é que agora tenho de aturar os dois lá na casa de Miraflores. Bem, lá estou outra vez eu a mentir: não conheço a Dona Jacinta, nem os filhos, nem tenho casa em Miraflores, nem tenho pai, nem vivo numa pensão, nem me chamo Areias, nunca li o Mixel Foù Cou, nem nada. Sou um dos dois filhos de uma qualquer Dona Jacinta. Um qualquer. Escolham.